Tempo de Solidão

"Tempo de solidão, tempo de exílio."

sexta-feira, abril 30, 2004

Sentir o normal

À medida que se aproxima, consegue sentir o nervosismo a crescer dentro de si. Sente que as suas mãos lhe tremem, que a sua garganta se ata com um nó, que age deselegantemente. Sabe que a sua voz vai fraquejar, o seu coração pulular de temor e timidez. Antevê com perfeita irrequietude a sua imagem palerma, a sua atrapalhação total no momento em que se dirigir à sua amada, no momento em que puder contemplar os seus vivos olhos negros cheios de vida e toda a ternura que ele deseja recolher. E, quando lhe dirige a palavra, ele é o homem, não, o rapaz mais envergonhado e inseguro do mundo, que não consegue fazer sair uma exclamação de coerência da sua alma apaixonada.

Muito bem. Mas eu não sou de imagem tão adorável, não duma tal candura a que se acha piada (lisonjeadora, até, se a amada perceber o seu significado).

Ah, não, mil vezes não! O que eu não daria para ser mais vivo e trémulo, como o velho cliché do rapazinho envergonhado na presença da portadora do seu afecto! Em vez disso, sou acompanhado de uma calma de desapaixonado (como se!), uma segurança irrequieta mas imperceptível.

Quando me aproximo dela, quando oiço a sua voz e me enterneço com a sua presença, não me envergonho, não fico nervoso. O meu coração bate loucamente, e as minhas mãos podem tremer um pouco, é certo, mas por fora estou calmo e consigo dizer tudo aquilo que eu tiver para dizer.

Ah, precisamente, o que é que eu tenho para dizer senão palavras de um amor impossível que me vergam a alma e me enchem o coração? Que poderá um tolo como eu cantar senão odes de sentimentos sinceros e assunções de beleza afectuosa? Oh, pagão inocente da decadência! Não lhe posso falar disso, não consigo pronunciar essas palavras. Não é tempo disso, nunca será, nunca será. E se é isso o que eu tenho a dizer, se são apenas declarações afins que me irrompem do peito, e se só isso importa dizer, então nunca mais o direi.

Tenho de lutar contra as lágrimas de cada vez que me separo dela e que me recordo de tudo o que podia ter dito. A glacial tortura da tristeza invade-me sem misericórdia quando ela se despede com o seu lindíssimo sorriso e eu sou deixado com nada mais do que memórias.

Serei eu cobarde? Talvez não. Mais para as bandas do “restringido”. Por vontade própria. Escolhi não lhe falar dessas coisas, certo que só nos poderia magoar tão sentida sinceridade. Eu sei que tenho razão, é escusado convencer-me do contrário, mentir-me.

É indescritível o tormento que sinto no meu fraco coração quando me afasto dela, depois de uma conversa falhada, insípida, depois de palavras fugazes, depois de mais uma oportunidade de lhe dizer algo com significado! Eis o drama!, vê-la afastar-se, senhora da beleza e calma, senhora do meu amor e de todo o meu afecto, senhora de mim! Meu amor… E eu, escravo de uma paixão que não quero reconhecer!

Não me importava de ser o pobre diabo que descrevi nas primeiras linhas, desde que tivesse algo a dizer. Oh, que digo eu? Eu tenho algo a dizer, apenas não o posso pronunciar! Que dupla patetice! Haverá maior mágoa do que saber o que fazer, saber o que dizer, falar do que se sente, discursar sobre a sinceridade da minha pessoa, e depois não o fazer? Não o poder fazer, por não querer e por não poder querer? Por não me deixar querer.

Só o meu amor é verdadeiro. E só eu o sei. Venha pois, ainda, o dia em que isso mudará, se para melhor se tratar. Ou para mal, se isso me fizer sofrer justificadamente. Até lá, tempo de solidão e de exílio.

segunda-feira, abril 26, 2004

Obsessão, amor e tristeza

Pretendo agora abrir um pequeno círculo pessoal de obsessão, amor e tristeza. Aqui fica o mote, embora de si já muito usado e sem dúvida gasto nesta página de repetições:

Que se chamam a lágrimas silenciosas e secretas, mágoas verdadeiras de que ninguém alguma vez conhecerá a tragédia?

Patéticas.

quarta-feira, abril 14, 2004

Remorso

O sentimento de hoje é de remorso.

A espera naquele cais atulhado alongava-se. Ao meu lado, as pessoas multiplicavam-se. ao fundo, um casal amava-se em silêncio, diluído na turba. Impaciência. Uns minutos mais tarde, minutos que pareceram uma eternidade ou não estivesse eu acometido da minha habitual e tola pressa, eis que chega o transporte, atrasado e insultuoso.

Ao meu lado esquerdo, um homem diz-me qualquer coisa. "Já aí vem.", murmura, com um sorriso. Viro-me para ele e creio dizer qualquer coisa. É o que basta para que o homem, uma pessoa com os seus trinta anos, entabule conversa comigo, alegre e descontraidamente, mas também de trejeitos ligeiramente forçados e, francamente, incómodos. Era quase como se estivesse ansioso por falar com alguém, e eu tivesse sido a primeira pessoa a olhar para ele.

Se ao princípio não me importei com a troca de palavras, fiquei menos tolerante quando percebi que ele não me largava. O pobre não estava a fazer nada de mal, não me estava a incomodar, em bom rigor, e as suas perguntas eram de pequenas consequências.

Contudo, a sua presença incomodou-me. Após uns minutos de resposta monossilábica e olhares permanentemente desviados, o pobre homem fartou-se e desapareceu sem dizer uma palavra assim que a sua paragem chegou, ele que antes tinha estado a tentar conversar tão alegremente comigo. Era visível que tinha ficado aborrecido.

Eis que olho então para esses triviais acontecimentos e que contacto que sinto ligeiros, mas sinceros, remorsos pela maneira como falei ao pobre homem. Acabava por ser um fulano simpático, embora com todo o desespero que se atribui aqueles que procuram a todo o custo um momento de comunicação com outra pessoa. E realmente, quem os pode censurar, se esta vida consegue ser tão entorpecedora e distante? Devo confessar que muitas vezes já me apeteceu entabular despreocupadamente conversa com totais desconhecidos. Só porque me apetecia. Provavelmente porque queria falar com alguém. Alguém a mais.

Isto é, todavia, uma digressão da qual tenho de regressar. O que por agora é importante que fique assente é o facto de eu ter praticamente enxotado o pobre conversador. As lamentações acometeram-me mais tarde, quando me apercebi que tinha feito exactamente o mesmo que tanto criticava no mundo à minha volta: fechado os olhos à vida que em meu redor pululava.

Quem sabe se ele não teria coisas interessantes para dizer? Quem sabe se não seria um completo idiota? Quem sabe se ele não me poderia ensinar qualquer coisa, maravilhar com as suas palavras? Quem sabe? Eu não, pois escolhi não saber.

É isso que me aflige. Eu que pretendo ser tão atento, eu que aspiro a ser tão sensível e humanista terreno, eu que me orgulho de saber ver a beleza escondida a muitos outros no mais singelo e claro rosto, eu acabei por me comportar exactamente da forma oposta à que professo. Naquele momento em que desprezei o homem, o egoísmo tomou conta da minha alma. E eu contrariei-me profundamente, sem sequer ser honesto comigo próprio.

É por isso que sinto remorsos. Não tanto pela conversa recusada, mas pelo que a minha atitude representa. Eu acredito em todas as vozes de todos os seres vivos, acredito que cada um é um indivíduo especial e, na medida do possível, único. Acredito ser possível achar belo e imaculado aquilo que é alvo de escárnio de todos os restantes, tombar de profundos amores pelo que é odiado. Creio que todos têm algo interessante a dizer. Espero pelo momento em que a voix perdue des hommes nos será restaurada.

Mas até eu conseguir provar isso a mim próprio, estas palavras serão tão ocas e perversas quanto todos os actos que eu não pratiquei.

terça-feira, abril 06, 2004

Aceitar o fim

No outro dia, li um dos mais sinceros e tocantes textos de amor que já tive oportunidade de conhecer. Para grande infelicidade minha, não me consigo recordar onde o encontrei, não me lembro com exactidão da página onde o vi. Sei apenas que está por aí, algures no meio da vasta rede de informação em língua portuguesa. E recriá-lo, embora actividade tentadora, é um exercício de futilidade.

Apesar disso, o texto tem ecoado pela minha cabeça. Era o texto de um apaixonado que se despedia da sua amada, mas não com amargura ou mesmo grande tristeza. Era mais um au revoir do que um adieux, uma carta lindíssima onde ele exprimia o que de magnífico levava consigo desse seu amor, aparentemente agora terminado.

Duas coisas me chamaram a atenção. Ele ainda estava apaixonado, isso via-se em cada linha escrita, em cada palavra cuidadosamente urdida para transmitir todo o sentimento da paixão. Em segundo lugar, a sua despedida, feita em tom de maravilhosa ode que iludia o trágico, denotava certos traços de resignação que eu não apreendi imediatamente, mas que se revelaram de imensa força imagética quanto mais meditava neles.

A despedida era tão natural e tão ajustada ao seu tempo que se diria uma inevitabilidade, algo visto como um dado e para o qual preparações já tinham sido feitas. Chegado o momento, tudo era uma formalidade, um procedimento. Não invalidava isso qualquer manifestação de sentimento amoroso; como eu disse, ele estava presente em todas as palavras. Contudo, não era desespero que se lia, raiva ou frustração. Eram as palavras de um apaixonado que aceitava que o seu amor tivesse chegado ao fim, e que reconhecia num adeus doce e suave a melhor forma de se desvanecer. Um texto realmente lindíssimo.

Por que razão pois, me ficou tão singular ode no espírito? Talvez por estar muito bem escrita, sem grandes floreados, sem preocupações de estilo ou beleza. Era sincera na sua simplicidade, e por isso mesmo, severamente mais tocante que muitas odes ou poemas elaborados por poetas ou outros escritores. E para mais, era um texto encantadoramente epicurista-triste, algo que sempre me fascinou enormemente.

Se Ricardo Reis escrevesse prosa e estivesse apaixonado, o efeito que as suas palavras teriam não seria inteiramente diferente do que aquele texto me conseguiu transmitir. Vejamos em tudo isto uma boa lição, se tal se impuser. Aceitemos. Esperemos. Aprendamos a colher os frutos. Saibamos largar as coisas.

“Como se cada beijo
Fora de despedida,
Minha Cloé, beijemo-nos,
amando.”

Já tive o meu tempo. Agora é altura de aceitar a despedida.

segunda-feira, abril 05, 2004

Insuportável inconsciência

É talvez por inveja que magico estas linhas, mas de cada vez que leio alguma coisa que ele escreveu, vêem-me sempre à cabeça os terríveis versos inseridos n’Os Maias com propósitos satíricos, vá-se lá saber porquê... Terá a ver com o seu estilo? Ou simplesmente com a sua insuportável atitude de filólogo romântico?

O Eusebiozinho (que também podia ser ele) recita:

É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeio céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu…


O problema é que não hão-de faltar Vilaças e falsos românticos a acharem tudo aquilo uma maravilha ("Que memória! Que memória!… É um prodígio!…").

Onde está a inveja? Reside então no triste facto de eu nem coisas como aquela conseguir elaborar. Mesmo toldadas por um pedantismo balofo e grosseiro, mesmo apaziguadoras dos sentimentos fáceis, fazendo malabarismo com as palavras como se tudo se tratasse de uma brincadeira, encontrando manifestos desígnios de satisfação ao desabar com a maior quantidade possível de pesados adjectivos numa oração, ora bem, mesmo assim, é algo que eu até desejaria saber fazer!

Bela crítica, portanto, que aqui (me) dirijo! É melhor fazer mal ou não fazer de todo? Bom, ao menos se nada criar, ninguém consigo desencaminhar da busca das coisas com real valor. E isso já é alguma coisa. (tudo isto, claro, partindo da grande presunção que alguma vez teria capacidade para exercer tal influência, o que é improvavél – oh, não caminhemos por aí; abrir-se-ia um trilho ofuscante de espirais auto-denegridoras…).

quinta-feira, abril 01, 2004

O tolo era ele

E ela, teria compreendido?

Ele tinha mencionado o trabalho, e a tarefa tremenda da literatura, onde literalmente não era possível terminar a demanda traçada mas também seria descabido desistir. Ela tinha sorrido, apreciando as bonitas palavras. Chegou a dizê-lo.

Ela falava agora da vida. Teria compreendido?

Ele julgou que não. A dolorosa realidade dos monólogos dialogados atingiu-o de novo. Por um momento, desejou ter permanecido no silêncio. Desejou não amar.

Mais tarde, percebeu que quem se tinha enganado em tudo aquilo tinha sido ele. Ele é que não se tinha apercebido do quão acertadas tinham sido as suas palavras. Ele é que era o tolo. Ele é que se tinha esquecido de novo com quem estivera a falar, e de quem ele próprio era. E com isso aprendeu a amá-la um pouco mais.