Lacrimosa dies illa ...
Meu Deus, há quanto tempo já não venho a este blog! Já criou teias de aranha na minha ausência, um interregno que, infelizmente, não foi motivado por qualquer género de cessação do meu exílio ou solidão. Antes tivesse sido. Todavia, conforme já expus por aqui em tempos anteriores, a tristeza não me motiva, não me acirra qualquer veia poética ou artística. Apenas me faz odiar a vida e a perder qualquer vontade criadora. Deixo de existir para mim e para os outros, é tudo.
E depois, vir aqui para quê? Para me encher de mais solidão com palavras que relatam aquilo que sinto ou que vivo? Já me chega o sofrimento do quotidiano, já me chegam todas as fugas que não têm o poder de aquecer o meu coração.
Mas há sempre algo de reconfortante, algures.
Devo admtir que, durante as últimas semanas, tenho encontrado grande conforto no Requiem incompleto de Mozart. Tenho ficado horas imóvel a deleitar-me com alguns dos seus movimentos, e percebi mesmo que até agora nunca tinha conseguido perceber a essência da sua música. Tantas vezes que eu já ouvi o Requiem e nunca compreendi...
É que este Requiem não é triste. Enfim, qualquer requiem é uma música fúnebre, mas este não é feito de mágoas. Não consigo ficar triste ao apreciar as suas notas. Há desespero, sim, há força, poder e sentimento, mas não sei se haverá tristeza. Se a invoca, é apenas porque ela já existe no fundo do nosso coração, e a sua beleza apenas nos faz recordar com mais força daquilo que já transportamos em nós. Não, em cada um dos andamentos do Requiem só existe a mais profunda compaixão em cada um dos seus andamentos, e a mais reconfortante das mensagens que uma profunda alma solitária pode ouvir.
Mas claro, há sempre o Lacrimosa. Terrível Lacrimosa. Comovente Lacrimosa. Foi este o andamento que mais confusão me causou, e foi este o responsável pelo meu falso entendimento da obra. É que o Lacrimosa é poderosíssimo. É a suprema ideia de música pura e bela. E como todas as coisas belas, é também muito suave, e enganadoramente triste. É como um lamento que apela directamente para aquilo que estivermos a sentir em cada momento: já o ouvi como oração, como murmúrio ou como luto. Depois passei a ouvi-lo como mágoa. Mas na verdade, ele é todo esperança e luz.
Foi o Lacrimosa que me fez compreender algo, foi esse oitavo movimento que me abriu a alma ao Requiem. O seu coro anseia por algo que esta vida não lhe pode dar, sente um desejo de uma ambiguidade absoluta e de uma existência perfeita. A música não é deste mundo. Fala-se do fim e da escuridão, e no entanto não se teme a sua dor. Como é isto possível?
É que há que ter esperança, apesar de tudo. Venha o que vier. O que o Requiem me diz agora é que a morte não é assim tão terrível como isso. Ou não deve ser. Não sei. Mas pode ser esperança e pode ser luz, pode ser uma visão confortante. "Requiem aeternam dona eis, Domine", "Concedei-lhes eterno repouso, Senhor", são as primeiras palavras e ideias do Introitus. É uma verdadeira e maravilhosa missa fúnebre.
O Lacrimosa (e o Requiem em geral) adquirem ainda uma dimensão mais comovente se nos recordarmos que Mozart estava às portas da morte quando o escreveu. Muitos acreditam que o Lacrimosa contém as suas últimas escrituras (embora provavelmente tenha sido a sequentia do Domine Jesu and Hostias a última a ser escrita), e o facto permanece que é um movimento, como muitos outros, incompleto. Todavia, a sua mensagem é clara e não foi deturpada ou escondida por entre as muitas variações a que a partitura foi sujeita. Em cada nota desta obra, em cada lamento e exortação que o coro profere, em cada acorde que percorre e desliza pelas várias dimensões da melodia, é perfeitamente inteligível a intenção última de Mozart.
O que quer que venha depois de tudo isto, não pode ser assim tão mau.
"A minha solidão alegra-se com esta elegante esperança".
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