Tempo de Solidão

"Tempo de solidão, tempo de exílio."

sábado, janeiro 15, 2005

"Biografia de alguém que nunca teve vida"

De facto, eu não tenho emenda.

Então não é que comecei a reler o "Livro do Desassossego" anteontem? Peguei nele por necessidade, por sentir que, mais uma vez, tinha chegado a hora de me cobrir com as suas palavras inquietas e sentimentos gémeos. Mais uma vez tinha sentido a falta de toda aquela solidão vertida eximiamente em palavra e símbolo.

E lembro-me que, no ano passado, voltei a pegar no livro por esta altura, provavelmente tal como acontecera um ano antes. É quase como se tivesse alguns livros irremediavelmente associados a certos meses. Não sei se me deva assustar mais com isto ou com o facto de estar a viver anos de emoções cíclicas. A minha vida não passa, apenas se repete.

Seja como for, é complicado descrever o que sinto quando leio esta obra. Por um lado, sinto-me quase privilegiado por ser este pequeno português que sou e conseguir ler esta língua tão difícil. Uma vez peguei na tradução inglesa do Livro e lembro-me de ter ficado muito triste por todos os leitores do mundo que nunca conseguiriam compreender e entranhar a verdadeira espiritualidade desta obra. As ideias passam, as formas quebram-se, e isso sucede para todos os livros. Mas até que ponto é que um livro vindo do fundo da alma, forjado pelo cansaço, desmaterialização, pela vida e pela monotonia, um livro resultante de um punho de genesíaco devaneio, até que ponto é que uma temível obra como essa pode ser compreendida plenamente sem a integralidade das suas estruturas formais?

Por outro lado, e falando do Livro em si, são numerosas as situações descritas e os sentimentos elencados que não me dizem nada, no sentido de nunca os ter conhecido ou de nunca neles ter meditado. Mas assim que os leio, sinto-os, vivo-os, empresto-os por dias a fio. É por isso que nunca me faz bem ler esta lindíssima obra, e é por isso que eu não tenho emenda ao pegar nela sempre que me encontro neste estado de espírito.

Outra ideia, ainda: se há palavras para descrever algo, e o mesmo conjunto de vocábulos consegue exprimir na perfeição algo de muito diferenciado, não teremos encontrado as Palavras Universais da nossa vida? Este livro está cheio de mim...

E, finalmente, ao percorrer esta obra do desassossego, encontro certas coisas que poderia ter eu escrito, se ao menos soubesse escrever...

"Amo, pelas tardes demoradas de verão, o socego da cidade baixa, e sobretudo aquelle socego que o contraste accentua na parte que o dia mergulha em mais bulício, a Rua do Arsenal, a Rua da Alfandega, o prolongamento das ruas tristes que se alastram para leste desde que a da Alfandega cessa, toda a linha separada dos caes quedos - tudo isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão do seu conjucto. Vivo uma era anterior áquela em que vivo; goso de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim, não outros versos como os d'elle, mas a substância egual à dos versos que foram d'elle.
(...)
Mas ha mais alguma cousa... Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem em cousas, não para me subsistituirem a realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fóra, como o electrico que dá a volta na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não sei que cousa, que se destaca, toada arabe, como um repuxo subito, da monotonia do entardecer!"

1 Comments:

At 11:14 da manhã, Anonymous Anónimo said...

"Não sei se me deva assustar mais com isto ou com o facto de estar a viver anos de emoções cíclicas. A minha vida não passa, apenas se repete." A tua vida passa, o problema é que nós estamos sempre a associar tudo e a relacionar os novos acontecimentos a acontecimentos antigos, nós é que não nos libertamos. As coisas só acontecem uma vez. Tudo é diferente, nós é que não conseguimos viver tudo como se fosse algo de novo.

 

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