Tempo de Solidão

"Tempo de solidão, tempo de exílio."

segunda-feira, setembro 20, 2004

Empréstimo ou doação

“- Não te mete, João.
Foi o conselho que Bel, a mulher de João, deu quando João disse que ia contar ao Gerson que vira sua mulher Mila agarrada com outro homem numa mesa de bar, no fundo, no escurinho.
- Não te mete, João.
- Mas Bel, no fundo, no escurinho.
Não adiantou Bel argumentar que podia ser um parente. Um primo. Alguém que a Mila não via há muito tempo.
- Então era há muito tempo mesmo – disse João. – Se beijavam como se não se vissem há vinte anos. Trinta. Na boca, Bel. E a mão dele na coxa dela. Por baixo da saia. Se era parente, era parente muito próximo.
- Você viu a mão dele na coxa dela?
- Não vi mas deduzi. A mão não estava à vista. A mão só aparecia para...
- Espera um pouquinho. Quanto tempo você ficou espiando a Mila?
- Eu não estava espiando. Não havia como não ver.
- Você disse que estava escuro. Podia não ser a Mila.
- Era a Mila.
- E se era só alguém parecido? Você conta para o Gerson, eles brigam, talvez até se matem, e você estava enganado, não era a Mila. E daí?
- Tenho a certeza que era a Mila, mulher do Gerson. E tenho que contar para o meu melhor amigo. Ele faria o mesmo por mim.

Não adiantou Bel argumentar que Gerson podia não acreditar nele. Ele acreditaria se o Gerson lhe contasse que vira ela, Bel, num bar, agarrada com outro? João respondeu que não acreditaria porque sabia a mulher que tinha. E que o que iria dizer ao Gerson era justamente isso: o Gerson não sabia a mulher que tinha. O Gerson precisava saber a mulher que tinha. Não adiantou Bel argumentar que o Gerson podia muito bem perdoar a Mila e brigar com o João. Que o João estava pondo em risco a sua amizade, além da vida da Mila. Que era melhor para todo o mundo o João não se meter.

Mas João se meteu.

João escolheu a sauna. Por alguma razão, achou que seria mais fácil se os dois estivessem nus. Faziam sauna juntos todas as terças, quando havia menos gente. Pouca gente por perto, os dois reduzidos a apenas isso, dois animais amigos, suando lado a lado. Perfeito. Seria na sauna da terça. João decorou sua fala. O tema seria: a Mila não te merece, você não merece uma mulher como a Mila. Mas João nem conseguiu completar a primeira frase - «Meu amigo, preciso te contar...» - e foi interrompido pelo Gerson, que agarrou seu braço.

- Meu amigo, preciso te contar uma coisa – disse o Gerson.

E Gerson despejou o drama que estava vivendo. João não sabia, talvez desconfiasse, mas agora ia saber. Ele, Gerson, estava arruinado. Perdera tudo. Não tinha a quem recorrer. Vendera todo o seu património mas as dívidas só aumentavam. Recorrera ao património da Mila mas não fora o suficiente. Restava uma saída. O crápula do Jailson, seu primo. O que vivia dando em cima da Mila. O crápula tinha dinheiro. O crápula poderia salvá-lo. Mas para isso, era preciso que a própria Mila pedisse. Que a Mila se encontrasse com o crápula e negociasse o empréstimo,. Ou a doação, dependendo de como se desenrolasse a negociação. Ao princípio, Mila resistira. Tiha nojo do Jailson. Nojo. Mas a isto nos impele este sistema asqueroso, choramingou Gerson, quase encostando a testa do ombro suado do perplexo João. A isto nos leva o dinheiro, a fraqueza humana e uma alma enegrecida pela cupidez. Implorei a Mila para que fosse ter com o crápula e conseguisse o dinheiro. Fui mais crápula que o crápula.
- E ela foi? – perguntou João.
- Foi. Por amor a mim, foi.
- Empréstimo ou doação?
Gerson mal conseguiu falar. Finalmente, com um soluço, disse:
- Doação. Doação!
E:
- Eu não mereço uma mulher assim!

Bel estranhou o laconismo do João, quando este chegou em casa.
- Como é? Contou?
- Ele já sabia.
- Quem era o outro?
- Um primo.
- Um primo? Mas...
João não quis falar mais no assunto. Durante o jantar, ficou pensado: o que a Bel faria por mim, se eu fosse crápula o bastante? A Mila não merece o Gerson. E eu mereço essa mulher? Mereceria a Mila? Concluiu: nenhum homem sabe a mulher que tem, até não tê-la mais.
- O que você está me olhando desse jeito?
- Nada.”